DESCRIÇÃO DA VILA DE CELORICO DA BEIRA EM 1874

Vila, Beira-Baixa, 18 quilómetros a O. da Guarda, próximo da Serra da Estrela, e 300 quilómetros a E. de Lisboa, 550 fogos, em 3 freguesias (Santa Maria, S. Martinho e S. Pedro, que hoje estão reduzidas a duas— Santa Maria, ou Nossa Senhora da Guia e S. Pedro, apóstolo.)

Antigamente teve 4 freguesias, como adiante se verá. Tem 2.000 almas. No concelho 3.200 fogos, na comarca 4.750.

Em 1757 tinha em 3 freguesias 380 fogos.

Bispado e distrito administrativo da Guarda.

Situada em um alto nas vertentes da Serra da Estrela, próximo do Mondego.

Diz-se que foi fundada por Brigo, quarto rei de Espanha, 1890 anos antes de Jesus Cristo, com o nome de Celiobriga (ano do mundo 2070).

Os túrdulos a ampliaram 500 anos antes de Jesus Cristo.

Parece-me que não foi fundada por Brigo (se é que tal rei existiu) nem se chamou Celiobriga. É mais provável que os seus fundadores fossem os túrdulos, pelo tempo que disse. Para evitar repetições sobre Celiobriga, vide esta palavra, onde vai tudo quanto pude saber com respeito a esta antiquíssima cidade.

Já Plinio a menciona como uma das cidades sujeitas a Braga.

Depois se chamou “Corro Rico”. Rodrigo Mendes da Silva, na “Poblacion General de Espanha” lhe dá também o nome de Zelo Rico, aludindo á fidelidade de seus habitantes em várias ocasiões. Pronunciava-se então Cêlo Rico, e daqui derivam o seu nome actual.

Ainda outros dizem que o seu nome era Sólo Rico, pela fertilidade de seus campos.

Até mesmo há quem sustente que o moderno nome desta vila é apenas a corrupção do primitivo, isto é de Celiobriga fizeram os romanos Celiobrica e os árabes Celorico.

A minha humilíssima opinião inclina-se a esta última versão, por me parecer muito natural.

Não sabemos hoje se os antigos pronunciavam Celióbriga, se Celiobriga (Isto entende-se com todas as povoações que tinham a terminação em briga) mas há razões para supor que diziam Celiobriga. Os árabes corromperam-nos muitas palavras (e antes deles fizeram o mesmo os romanos e godos) e não é muito para admirar que de Celiobriga fizessem Celorico, que para eles era de mais fácil pronúncia.

Tem por armas um escudo bipartido, tendo á direita cinco estrelas, e por cima um crescente; e á esquerda uma torre, e sobre ela, voando, uma águia com um peixe nas garras.

Deram causa e origem a estas armas dois feitos gloriosos aqui ocorridos, que são os seguintes:

Em 1189, veio sobre esta vila um grande exército de castelhanos e leoneses, e lhe puseram cerco.

Era alcaide-mor do castelo de Celorico D. Gonçalo Mendes, e do de Linhares, seu irmão D. Rodrigo Mendes, filhos do conde D. Mendo; sendo rei de Portugal D. Sancho I.

Não sofreu o ânimo valoroso destes dois bravos portugueses estarem muito tempo encurralados no castelo, pelo que, uma noite de lua nova, deram de improviso sobre os inimigos, e os derrotaram completamente.

Os de Linhares tinham chegado nessa mesma noite á praça e foi, animados com este valioso reforço, que os de Celorico decidiram investir o inimigo, que fugiu vergonhosamente, deixando no campo todos os roubos que tinha feito, todas as suas bagagens, e grande número de mortos, feridos e prisioneiros. 

Daqui tomou a vila por armas cinco estrelas e um crescente.

Linhares teve as mesmas armas,

Em 1245, era alcaide-mor de Celorico, D. Fernando Rodrigues Pacheco, por D. Sancho II. Sendo este rei deposto, e nomeado governador do reino seu irmão, o conde de Bolonha (depois D. Afonso III) persistiu o bravo alcaide-mor na sua fidelidade ao rei; pelo que D. Afonso lhe veio pôr cerco, que durou muitos meses. Estando o castelo próximo a render-se pela fome, por acaso uma águia deixou cair sobre o castelo uma truta.

O alcaide a mandou de presente a D. Afonso, significando-lhe que na praça havia abundância; pelo que este abandonou o cerco.

O conde de Bolonha (depois D. Afonso III) em desforra de não poder tomar o castelo de Celorico, assolou toda a sua comarca. D. Sancho II, por carta régia, datada de Toledo, a 2 de setembro da era de 1284 (1246) declara estas crueldades, e que os bispos de Coimbra e Braga excomungaram os cercadores. Conta a história da truta, etc.

Pela mesma carta regia fez alcaide-mor de Celorico a Pacheco e deu grandes privilégios á vila (além dos antigos, que confirmou) sendo um deles, «que seus peões sejam em juízo havidos por cavaleiros e estes por infanções.» Esta carta está assinada pelo rei, pela rainha (D. Mecia Lopes de Haro) D. Lopo Dias de Haro, D. Diogo Lopes de Salcedo, D. Rodrigo Gonçalves Girou, D. Martim Gil, D. Pedro Eanes, D. Gonçalo Mendes, D. Egas Vaz, fr. Miguel e fr. Vicente.

Este último a escreveu, por mandado d'el-rei.

Quem levou a truta a D. Afonso III foi Gomes Viegas. D. Afonso, admirado, chamou a Gomes Viegas, o Peixão. Este ficou todo orgulhoso com o apelido e deixou a de Viegas (que significava velhas, pelo que era feio) e tomou de aí por diante o de Peixoto.

Eis, segundo o padre Carvalho, a origem do apelido Peixoto. Será.

Eis a origem da segunda parte das armas de Celorico, isto é, da águia com a truta e da torre.

Teve esta vila diferentes senhores. Antes do reinado de D. Fernando, pertenceu a Martim Vasques de Sousa. D. Beatriz, mulher de D. Afonso III, fez alcaide-mor de Celorico, a Martim Vasques da Cunha. Este rei a deu em dote a sua filha bastarda, D. Isabel, que casou, em 1373, com o conde de Gijon (D. Afonso Henriques de Castela Noronha) filho, também bastardo, de D. Henrique II, de Castela, irmão de D. Pedro Cru.

Em 21 de janeiro de 1385, era senhor d'esta vila Martim Afonso de Melo, quinto senhor da vila de Melo e rico-homem de Portugal. Este herói foi o primeiro cavaleiro português que saiu a receber D. João de Castela, à cidade da Guarda, reconhecendo-o por legitimo rei de Portugal e entregando-lhe esta vila!

D. Manuel a deu ao primeiro conde de Portalegre (D. Diogo, seu aio) e, pela extinção desta família, tendo vagado para a coroa, a deu D. Pedro II a André Lopes de Lavre.

Os seus donatários eram também alcaides-mores do castelo.

No reinado de D. José I (1762) foi esta Vila tomada e saqueada pelos espanhóis; mas logo a largaram.

……………………………………………………………………………………………………..

A igreja matriz de Santa Maria, é colegiada do padroado real. É um templo majestoso e seu orago Nossa Senhora da Guia.

O prior tinha 300$000 réis. Tem seis beneficiados, que eram apresentados alternativamente pelo papa e pelo ordinário, e duas apresentações eram do padroado real. Cada beneficiado tinha 200$000 réis. Tinha mais um arcediago, benefício simples, que rendia 500$000 réis; e um tesoureiro da apresentação do prior, com 250$000 réis.

A igreja matriz de S. Martinho é um templo antigo, e, segundo alguns escritores, fundado pelos templários, em 1302. Era do padroado real, e o prior tinha 350$000 réis. 

Viterbo diz que os templários fundaram ou reedificaram esta igreja, em 1217. No seu frontispício havia duas pedras com a seguinte inscrição: E. M. CC. II. V. MAGISTRO MENDO, CONSTRUCTA FUIT. ISTA ECCLESIA.

Sendo esta igreja reedificada em 1770, se adulterou completamente a sua primitiva ordem arquitetónica, não restando outros monumentos da antiga igreja mais do que estas duas pedras, colocadas na parede exterior da capela-mor, da parte do Evangelho.

Esta igreja deixou de ser matriz, porque se suprimiu a paróquia, que em 1757 tinha 92 fogos.

A matriz de S. Pedro, é também obra dos templários, fundada em 1230, e também do real padroado. O prior tinha 300$000 réis.

Em 1757 tinha 135 fogos.

Havia antigamente nesta vila uma freguesia de Santo André, apóstolo, que foi suprimida no reinado de D. João III, fazendo-se a Misericórdia na sua igreja, e das rendas se fizeram dois benefícios na colegiada de Santa Maria; que eram os dois da apresentação régia.

Há aqui uma albergaria.

O Mondego corre próximo da vila, fertilizando os seus campos, pomares e hortas.

Cria muito gado e tem bastante caça nos seus montes.

Antes de 1834, tinha juiz de fora, câmara, escrivães, etc., tudo posto pelos marqueses de Gouveia, menos o juiz das sisas, que era feito pelo rei.

No reinado dos nossos primeiros monarcas, tinha dois juízes, dois vereadores, almotacé, alcaide e meirinho, “et reliqua”. Tinha 30 lugares na sua jurisdição.

Tinha capitão-mor, sargento-mor e uma companhia de ordenanças.

Sobre o rio Mondego tem uma majestosa ponte de cantaria, feita por D. Manuel, no princípio do século XVI, e duas menores.

Cercam a vila extensas vinhas, que produzem óptimo vinho, e grandes olivais, que dão muito bom azeite.

É terra muito fértil.

O Campo do Tabulado chama- se assim, porque antigamente havia aqui um anfiteatro de tabuado, onde se faziam justas, torneios, etc.

Em 1635 apareceu aqui uma lápide cora a seguinte inscrição romana: R. C. I. A. - V. A. N. S. I. R. - A. C. H. N. I. - R. V. M. - J. N. I. D. I.

Dizem (os adivinhadores) que quer dizer: «Sendo imperador romano Augusto César, os povos de Castela, chamados vascos, com os capitães Nigro, Sérvio e Junio, edificaram este Castelo, em nome do imperador. O mestre que o fez se chamava Rutilio Varo. Os capitães Junio e Nigro o dedicaram ao imperador Julio.» (!)

O Castelo de Celorico era fortíssimo e tinha duas torres e dois cubêlos.

É no topo do morro em que está fundada a vila, a qual e seus arrabaldes domina inteiramente. É obra dos romanos e D. Diniz o reedificou. Está em ruínas.

D. Afonso I lhe deu foral, sem data, com muitos privilégios. D. Afonso lI lhe deu foral, confirmando e ampliando os privilégios do primeiro, em Coimbra, no ano de 1217.

D. Manuel a fez vila, e lhe deu foral novo, em Lisboa, no 1." de julho de 1512.

A vila tem bons edifícios, mas nenhum notável, além da casa da câmara (contendo também o tribunal judicial e a cadeia) que é das melhores e mais seguras da província.

Há aqui duas feiras cada semana, de grande concorrência e importância. Só de trigo concorrem ás vezes a uma destas feiras 8.000 alqueires.

Celorico é o centro de todo o comércio com a raia, o que faz muito prosperar esta terra.

É o seu território fertilíssimo e muito saudável.

Há aqui, sobre o Mondego, três pontes, uma de pedra e duas de madeira. Ao S., junto ao rio, se têm descoberto várias antiguidades romanas.

Os povos da Beira chamam a esta vila Celorico dos Bêbados. É com inveja da abundância e óptima qualidade dos vinhos daqui.

Tem Misericórdia e bom hospital, 12 capelas, 8 fontes, sendo a melhor a da Pipa.

………………………………………………………………………………………….…

Celorico, como praça de grande importância, serviu de reféns, dado por D. Dinis, para as pazes que fez com seu filho D. Afonso (depois IV) em Santarém, a 25 de fevereiro de 1325.

Tornou a ser dada como reféns, por D. Afonso IV, para penhor de paz com D. Afonso XII, de Castela, vindo então para alcaide (com guarnição castelhana) D. Fernando Afonso Cambraen. Tornou ainda a ser reféns, dado por D. Fernando, de Portugal, a D. Henrique II, de Castela, em 1373.

É pátria do dr. Miguel da Silveira, poeta ilustre e autor do poema dos Macabeus.

Do beato fr. António de S. Pedro, que fez muitos milagres em Ossuna, no convento dos mercenários descalços.

E de Rodrigo Mendes da Silva, cronista de Portugal por Filipe III, e autor da bem conhecida obra intitulada “Poblacion General de España”, impressa em Madrid, a primeira vez em 1628 e reimpressa na mesma vila coronada, em 1675. Este Silva bandeou-se com os inimigos da sua pátria, e na sua obra chama muitas vezes tirano ao nosso D. João IV. Passou-se para Castela, lá escreveu (era espanhol) e por lá ficou.

A comarca de Celorico é composta do julgado de Celorico e do de Fornos de Algodres.

O concelho compreende 22 freguesias, que são: Açores, Baraçal, Cadafaz, Carrapichana, Cortiço, Forno Telheiro, Jejua, Juncais, Lajeosa, Linhares, Maçai, Minhocal, Mesquitela, Prados, Rapa, Ratoeira, Salgueirais, Celorico (Santa Maria e S. Pedro, duas freguesias) Vale de Azares, Velosa e Vide.

 In “Portugal Antigo e Moderno”, de Pinho Leal (1874, Vol. 2, Pág. 232)